O Artesão virou o Charlie Chaplin maquinista?
Recentemente, assisti a um vídeo no YouTube sobre o cotidiano de desenvolvedores que me deixou reflexivo. Estou no processo de transição para a área de TI, ajustando meu currículo e me preparando para as primeiras entrevistas.
O vídeo destacava como a profissão de desenvolvedor é relativamente nova e comparava o trabalho ao de um artesão, onde a criatividade e o tempo dedicado ao desenvolvimento estão alinhados à ideia de entregar um produto completo, que justifica sua existência por si só. Esse produto, por sua vez, seria um reflexo genuíno das horas de dedicação e esforço do desenvolvedor.
No entanto, com a implementação de métodos de entrega mais rápidos e a microgestão dos processos, os desenvolvedores têm se tornado cada vez mais distantes do produto final. É como se o trabalho do desenvolvedor tivesse se transformado em um simples "arrastar de mouse" e "pressionar de teclas". Isso ocorre porque o mercado de trabalho tem "industrializado" o que antes era um processo artesanal de criação de software. O vídeo sugere que esse é um caminho sem volta, pois a padronização dos processos facilita a automação das etapas e maximiza os lucros dos investidores.
Esse cenário parece desmotivador para quem, como eu, está entrando no mundo do desenvolvimento. Será que isso é verdade? O que vocês pensam sobre isso?
Cara, obrigado por passar esse canal! Não conhecia! Os tópicos que esse youtube trouxe eu penso bastante desde que migrei para essa área de desenvolvimento (faz mais ou menos 5 anos).
Minhas impressões sobre o que vc perguntou (e releva um pouco pois esse post será catártico):
- Pelo que entendi do vídeo - e eu concordo com isso - a culpa não é necessariamente do ágil, mas sim do capitalismo. Houve um movimento de profissionalização inevitável da área que a tornou mais acessível para as pessoas e mais empresas puderam desenvolver sistemas, mas isso trouxe formas de gerenciamento e, que culminou numa fórmula taylorista de ver o desenvolvimento mesmo. Eu concordo com ele que, o fato de você não ver mais graça no trabalho como dev, é por que alguém precisa lucrar muito com o que você faz e essa pessoa não é você.
Quando eu estudava para a área, eu achei que iria virar um pesquisador ao virar um desenvolvedor, mas, realmente a realidade é outra. Virei um engenheiro, só que é uma engenharia diferente de quando você imagina, por exemplo, um Engenheiro Civil.
Como Engenheiro de Software Sênior, vc é uma pessoa que vai fazer parte do planejamento (como fazer e, dependendo da empresa, vai ter alguma participação do quando aquilo ficará pronto e torço que você tenha) mas, muito mais do processo de execução. Vai participar também do conserto do que foi produzido. Vai ter vezes que você vai consertar coisas que você não produziu. Vai ter vezes que precisará entender e começar a produzir em cima de algo que você não produziu e a empresa deixou esquecido. Vai se relacionar com times com pessoas de cargos distintos e eventualmente falará diretamente com seu cliente.
Lembrando da analogia acima, eu me sinto como um misto de um engenheiro civil mas que é pedreiro, mestre de obras kkk.
Uma outra analogia: você é um "operário premium". Você não só aperta os parafusos, mas pensa no design daquilo que os parafusos vão entrar, ao mesmo tempo que tem um tempo limitado pra fazer isso e vão sempre te cobrar uma postura de engenheiro|dono da empresa|operário especializado que precisa se atualizar. Ou seja, precisa consolidar um certo nível de estudo para pensar em uso de novas ferramentas, novos designs. São exisgências bizarras se você seguí-las 100%.
Ao mesmo tempo, você é capaz de construir algo seu ou para um público que você queira. Mas isso é só uma possibilidade para aqueles que conseguem programar após o trabalho que lhes dá sustento. Nessa, talvez você tenha chance de enriquecer muito.
Em resumo: noto que a área de TI perde muito por não se organizar enquanto classe. E as empresas estimulam, incentivam muito isso por que lhes dá muito dinheiro.
No geral, as empresas escondem os salários dos colaboradores, não há transparência pois os salários negociados. Você vai ter colegas que produzem mais que vc ganhando menos e vc vai ter situações em que você produz mais e ganha menos também. Como as pessoas tendem a ficar isoladas, ninguém conversa sobre isso e não consegue reverter sua própria situação.
Estimulam competições de eficiência entre eles de forma velada, precarizam cada vez mais o trabalho dos desenvolvedores para lucrar cada vez mais. E ainda vão tentar te motivar com coisas como propósito da empresa (no geral, criam propósitos, mas só querem ganhar mais dinheiro mesmo). É muito difícil se destacar sem fazer horas extras e sem "dar o sangue", "vestir a camisa" e tudo que esses jargões empresariais falam para te alienar e fazer você um colaborador dócil e produtivo.
Na minha visão: se existe um mínimo de artesato, ele pode estar quando vc escreve algumas linhas de código quando você pode decidir como escrever, mas, em geral, é um ritmo de fábrica no sentido de produção contínua e com respeito limitado (e em alguns lugares inexistentes) com o que a pessoa consegue entregar em horário regular.
Mas se você me perguntar se vale a pena: eu acho que vale. Pelo menos por um tempo. Para muitos, a área de desenvolvimento foi uma guinada financeira alta, num país extremamente desigual. Enquanto for possível essa guinada, pode valer a pena. Existem profissões em situações muito piores, só que a pessoa ganhando menos e com dificuldades de conseguir emprego ou sem nem a promessa de chance de crescimento. Sem falar que o ambiente de trabalho é um pouco mais agradável por que as pessoas são educadas e vão evitar conflitos óbvios. Se teu empregado não gostar de algo que você fez, ele irá mostrar isso de uma forma institucionalizada de forma que possa calçá-lo caso isso signifique uma demissão e, por um processo que tente dar um mínimo de humanização e justiça (quando há).
Eu falo de lugares bons pra desenvolvimento. Mas existem n pessoas que passaram por situações muito ruins das que estou comentando. Existe de tudo.
Se você tem condições financeiras, aí eu recomendaria buscar uma profissão (ou até ser dono de um negócio, caso você queira) menos suscetível a precarização e com um ritmo acelerado (se é que existe, divago).
Penso muito em migrar de carreira e, uma coisa que me motiva na migração é o fato de poder programar por lazer, algo que não teria sido possível senão tivesse embarcado nessa jornada pois não teria tido a experiência, não teria aprendido.
Programar "formatou" o meu cérebro para muito melhor. Além disso, a guinada financeira permitiu que eu cuidasse da saúde mental e pudesse ajudar pessoas que amo, porém, o que ganho hoje é igual ou menos do que um analista judiciário ganha em início de carreira. Se talvez eu estivesse investindo energia numa carreira dessa, poderia tá numa situação mais estável.
Tem pessoas que estão em situações melhores das que relatei, mas o meu cenário é que tenho dificuldades na área e não consigo acompanhar 100% as expectativas dos meus empregadores, sempre há algo a melhorar. Como não tenho colegas de mesma senioridade para conversar, não sei se é assim com eles também.
Se você conseguir ser um high performer, suas chances de crescer são maiores. Mas, no meu caso, não conseguiria isso sem fazer hora extra e ter problemas de saúde.
Acho que, aprender a programar foi uma das coisas mais difíceis da minha vida e é algo muito legal quando vc escreve coisas, consegue testar elas e corrigir quase que imediatamente. Isso não é possível se você é um engenheiro civil. Aprender coisas pq vc quer aprender e conseguir aprender também é uma sensação legal! Criar sistemas/projetos para alguém ou para consolidar conhecimento também pode ser divertido!